"Uma mulher de cabelos vermelhos, sentada em um balanço, vai para cima e para baixo sem cessar. Olhando fixamente para frente, sorri o tempo todo com a boca entreaberta. Veste uma roupa cinza cheirando a naftalina e suas mãos sangram segurando as cordas do balanço. Não parece ser nova nem velha. Apesar das rugas, o tempo no seu rosto não tem data. Quanto mais vai para cima e para baixo, mais a cor dos cabelos se transforma. O vento toca no vermelho e solta faíscas feito brasa assoprada. A pele muito brnaca contrasta com o sangue nas mãos. Não sente dor, não geme, e não parece triste e nem alegre, apenas balança intensamente, acompanhada de um sorriso misterioso. Dizem que está lá há muitos anos. Chovendo, trovejando, ou sob sol, eis a mulher em seu assento que não pára de descer ou subir. Preso entre árvores, o balanço não transmite o lirismo dos quintais da infância. O cheiro de carambola não existe. O cheiro é outro, aliás são outros. O quintal transmite a sensação de não ter chão. Ela voa, segurando as cordas soltando faíscas. Algumas pessoas param para olhá-la, outros riem, algumas irritadas tentam falar alguma coisa, pedem para parar de voar, de exibir as cordas molhadas de sangue, mas ela não escuta e o movimento persiste. Chegando mais perto do brinquedo misterioso, o sorriso da mulher que vai pra lá e pra cá torna-se claro. Não é uma bruxa e nem profeta, é laica e irônica. O sorriso de boca entreaberta revela uma ironia sagrada que incomoda e enfeitiça. Entrnado em seu ritual profano, os olhares mudam de intensidade. A mulher de cabelos vermelhos faz com que os espectadores mais atentos se sintam com os pés presos ao chão. A sensação deste momento é um peso na sola do pés tragados por raízes lá de baixo, imobilizando os que entram em seu sorriso e se encantam pelas brasas de seus cabelos..Dizem também que ela fala sem falar, que algumas vozes são emitidas de seus cabelos quando alguém se permite viver um hipnótico encontro com seu balanço. Quando o vento sopra mais forte, o cheiro de naftalina some de suas roupas e escutamos barulhos de ondas com cheiro de mar. Em seu sorriso que não é alegre e nem triste, ela ironiza a profundidade e o oculto do humano. Na superfície de seu corpo, diferentes tempos e intensidades desassossegam os que tentam lhe dar um nome ou concluir uma história. Na superfície dos cabelos, da pele branca, da mão que sangra segurando as cordas, da boca entreaberta que emite vozes que não são só suas, ela convida quem observa a multiplicar o olhar.
O inevitável não existe para está mulher."
Luis Antonio Baptista